A violação sistemática dos direitos humanos nas cadeias públicas e penitenciárias do Paraná e os obstáculos para a ressocialização dos presos foram temas de uma audiência pública realizada na manhã desta terça-feira (14), no Plenarinho da Assembleia Legislativa do Paraná. Familiares e autoridades discutiram, durante quase três horas, situações que envolvem, diretamente, cerca de 38 mil pessoas encarceradas no sistema prisional do estado, que teria capacidade de atender aproximadamente 28 mil detentos.
“A superlotação potencializa problemas de saúde”, afirmou o professor Patrick Lemos Cacicedo, da Universidade de São Paulo (USP) e Defensor Público do estado paulista. Ele, que participou da reunião de forma on-line, lembrou que o Brasil registra no sistema em torno de 900 mil presos, “numa realidade caótica”, frisou. De acordo com o docente, que atua na área há cerca de 15 anos, boa parte dos problemas são semelhantes em todas as regiões: “É um ambiente, na maioria das vezes, caracterizado pela extrema violência”. O especialista disse ainda que o número de pessoas que morrem dentro do sistema por questões de saúde é preocupante. Manifestou preocupação com casos de tortura e de violência com os familiares no momento das visitas. Na opinião de Cacicedo, a presença permanente de entidades ligadas aos movimentos de defesa dos direitos humanos nas prisões contribuiria para amenizar esse cenário.
Intitulada “O Estado de Coisas Inconstitucional e a Violação Sistemática dos Direitos Humanos no Sistema Prisional”, a audiência pública foi promovido pelo deputado Renato Freitas (PT), presidente da Comissão de Igualdade Racial da Assembleia. “É desafiador falar sobre a violação dos direitos humanos no sistema prisional, sobre aqueles rejeitados pela sociedade. É enfrentar o bordão ‘bandido bom é bandido morto’. Estamos falando de uma realidade onde as estatísticas mostram que a grande maioria dos presos são jovens, negros, das periferias e com ensino mínimo”, declarou Freitas, na abertura da audiência. O parlamentar citou a decisão de 2015, do Supremo Tribunal Federal (STF), que no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 347, considerou a situação prisional no país um “estado de coisas inconstitucional”, com “violação massiva de direitos fundamentais” da população prisional, por omissão do poder público. Uma das medidas cautelares concedidas pelo Plenário do STF foi a liberação de recursos do Fundo Nacional Penitenciário (Funpen) e a proibição de contingenciá-los. Conforme Freitas, esse estado de coisas demandou a necessidade de uma atuação cooperativa das diversas autoridades, instituições e comunidade para a construção de uma solução satisfatória.
Segundo o deputado Professor Lemos (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos e da Cidadania da Assembleia, quem está privado de liberdade precisa ser respeitado, tratado com dignidade. Ele entende que são necessárias medidas que contribuam com a ressocialização e enalteceu a importância do cumprimento das leis, como a que implementou o programa Justiça Restaurativa. O objetivo é construir uma outra experiência de justiça para aqueles envolvidos em uma situação de violência e conflito. A Justiça Restaurativa tem como finalidade criar espaços de comunicação entre os envolvidos e dar à vítima maior autonomia para decidir como ela deseja ver seu caso ser tratado pelo sistema de justiça criminal.
“Como é possível avançar?”, questionou o promotor Alexey Choi Caruncho, que atua no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça (CAOP) Criminal, do Júri e de Execuções Penais, do Ministério Público do Estado. O promotor discorreu sobre as atribuições do MP, que, em caráter preventivo, monitora as políticas estatais criminais de maior impacto social, trabalhando em conjunto com os mais distintos órgãos estatais para que os interesses sociais sejam sempre pauta para definir os rumos da política pública na área criminal. “Estou aqui hoje para ouvir vocês”, completou.
Esse foi também o posicionamento do desembargador Ruy Mugiatti, do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “É um problema de grande envergadura e complexidade, um grande desafio para a sociedade”, sublinhou. O desembargador é um dos responsáveis pelo projeto das Unidades de Progressão (UPs), que teve origem no programa “Cidadania nos Presídios” do CNJ, desenvolvido em conjunto com o GMF e a Polícia Penal do Paraná. Ele ganhou arcabouço legal em decretos, resoluções e portarias ao longo dos anos. Mugiatti falou sobre o propósito de humanizar o tratamento penal a partir do cumprimento da Lei de Execução Penal e da aplicação dos conceitos e práticas da Justiça Restaurativa. O desembargador considera as UPs um modelo de tratamento penal que serve como referência para as outras unidades do Estado e do país, sendo de extrema importância para a eliminação do estado de coisas inconstitucionais que sempre se verificou no sistema carcerário. “Também estamos aqui para ouvir”, acrescentou.
Comida azeda e violência
Familiares e ex-apenados deram diversos depoimentos durante a audiência relatando casos crônicos de comida azeda sendo servida nas unidades, falta de acesso à água, de banho de sol, de violência com parentes nos momentos das visitas, de ausência de atendimento médico e de oportunidade de estudos e profissionalização, entre outros pontos. Egressa do sistema, Cayanne de Fátima Vieira da Silva, presa pela primeira vez pela acusação de porte de drogas, hoje é funcionária do Centro Cultural Núcleo Periférico. “É um lugar onde sofremos julgamentos constantes, onde muitas mulheres estão abandonadas, sem atendimento médico adequado. É muito sofrido”, relatou. Testemunho semelhante foi apresentado por William Nascimento dos Santos, também funcionário do Centro Cultural Núcleo Periférico. “Perdi um olho na prisão porque fiquei jogado, sem assistência médica adequada”, contou. A primeira prisão de William foi consequência do envolvimento em uma briga de torcida organizada, quando acabou sendo acusado de assalto.
De acordo com o nutricionista Gabriel Francisco Cerutti Bonatto, da Cooperativa Central da Reforma Agrária, os relatos de oferta de “comida podre” são muitos e não há no sistema o respeito ao direito fundamental de uma alimentação saudável. Ele propôs que cada unidade prisional tenha a sua cozinha, com os detentos participando da elaboração da alimentação, iniciativa, entende ele, que contribuiria na formação profissional. Já a psicóloga Nayanne Costa Freire, da Defensoria Pública do Estado do Paraná, apresentou um relato sobre um projeto desenvolvido no Complexo Médico Penal, localizado em Pinhais, voltado a desinstitucionalização dos apenados. Ela falou das dificuldades para essa “saída do sistema” e alertou sobre a decisão do CNJ: o artigo 18 da Resolução nº 487 de 15/02/2023, do Conselho Nacional de Justiça, institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, estabelecendo que, em até 12 meses, deveria ser determinada a interdição total e o fechamento de estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil. Esse prazo foi prorrogado para 28 de agosto de 2024 por meio do julgamento do Ato Normativo pelo Plenário Virtual do CNJ. “São 88 pessoas atendidas até agora, em quatro anos. 13 retornaram para suas famílias”, informou.
“Temos mais pessoas presas do que cama”, frisou a defensora pública paranaense Luana Neves Alves, que participou via zoom, ao citar dados que mostram que há cerca de 38 mil presos no sistema do estado, contra aproximadamente 28 mil vagas. Ela, igualmente, alertou para o fato que essa superlotação traz uma série de problemas, especialmente “a deterioração da saúde”. “Precisamos pensar na reinserção social”, conclamou Rose Mary Cândido Plans, coordenadora-geral de combate a tortura e graves violações dos direitos humanos do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, que acompanhou de forma on-line a audiência.
Ao todo, o Paraná tem 37 penitenciárias e 81 cadeias públicas distribuídas em nove regionais administrativas localizadas em Curitiba, Ponta Grossa, Guarapuava, Francisco Beltrão, Maringá, Londrina, Umuarama, Cascavel e Foz do Iguaçu. Além disso, existem 14 complexos sociais e 37 postos avançados de monitoração eletrônica.
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